Há 200 anos,
Pernambuco viveu quase três meses de independência do Brasil e de Portugal. A
primeira experiência republicana no País logo foi reprimida pela Coroa
Portuguesa. Os ideais e contestações dos revolucionários, porém, não morreram.
Repercutiram. E alguns problemas levantados pelos heróis da revolução
permanecem sendo discutidos hoje. Afinal, que reticências deixadas por aqueles
acontecimentos ainda são motivos de luta dos pernambucanos atualmente?
A eclosão do
movimento de 1817 aconteceu nove anos após o desembarque da família real
portuguesa no Brasil. Esse fato, na análise dos especialistas, é marcante para
que se acentuem as insatisfações da província, que era uma das mais prósperas
na época.
Desde que Dom João
VI desembarcou no País, a população passou a sofrer com o aumento de impostos
para sustentar o monarca e outras 15 mil pessoas que vieram com ele de
Portugal. “Havia uma grande exploração
da Corte no Estado. Exemplo disso era o fato de a cidade do Rio de Janeiro ser
iluminada com os impostos cobrados no Recife, que vivia às escuras”,
exemplifica o historiador Leonardo Dantas.
Os clamores atuais
do País por uma reforma tributária e uma melhor distribuição dos recursos da
federação guardam semelhanças com o período revolucionário. “Quando a gente não
resolve os problemas, os ciclos históricos tendem a se repetir. Os fatos se
passam quase os mesmos, só que em camadas diferentes”, avalia o presidente da
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Luiz Otávio Cavalcanti, fazendo uma
comparação com a insatisfação com os altos tributos sem o devido retorno para o
Estado já no século 19.
O advogado e
especialista em direito público, Fábio Silveira, destaca que vários levantes
que aconteceram naquele período se deram justamente pelo volume de tributos
impostos aos cidadãos. “Eles chegavam ao ponto de tirar a capacidade econômica
e produtiva da população. Isso fez com
que irradiasse aqui a Revolução de 1817. Hoje voltamos a ter uma carga
tributária altíssima e um modelo complexo de tributação”.
E outro problema que
ainda não se resolveu no País é a instauração de um modelo consistente de
federação, uma das principais bandeiras dos revolucionários pernambucanos, que
contestavam o poder centralizador da Coroa.
“A ideia deles era criar um sistema federativo em que as províncias
tivessem seu autogoverno e também uma representação parlamentar. Havia uma
inspiração do modelo que se instaurou na América do Norte”, explica o
presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
(IAHGP), George Cabral.
Uma das
consequências dessa situação é a centralização pela União dos recursos
arrecadados no País. “No século 19 o poder moderador da Coroa era
centralizador, como toda monarquia. Dessa vez, a concentração é de outra forma,
naquela época era politica e administrativa. Agora é financeira. A União
consegue sugar quase todas as riquezas do modelo produtivo, que fortalece muito
seu cofre e deixa os demais entes da Federação à mercê dela”, declara Fábio
Silveira.
Mas um debate para
encontrar soluções tem crescido nos últimos anos. Entre elas, a rediscussão do
chamado Pacto Federativo (mecanismo que define a relação fiscal entre os entes
da Federação). O tema foi muito debatido na última eleição presidencial,
principalmente por um pernambucano, o então presidenciável Eduardo Campos.
Um dos defensores da
ideia, o deputado Tadeu Alencar em recente discurso, lembrou que a situação
parecia melhorar com a promulgação da Constituição de 1988. Pela nova Carta,
30% dos recursos arrecadados ficavam com a União, distribuindo os 70% restantes
com os Estados e municípios. “Hoje, essa equação foi inteiramente subvertida,
fazendo com que governos estaduais e prefeituras promovam, de tempos em tempos,
a mais ultrajante caravana em busca de recursos junto ao Poder Central”, critica
Alencar.
A pauta chega em
2017 nas mãos do presidente Michel Temer, que se apresenta como líder de um
governo reformista. “Agora, o Executivo quer se empenhar na reforma tributária.
É mais uma reforma que queremos patrocinar e levar adiante”, prometeu o
presidente no seu balanço de gestão em 2016.
Porém, diferente do
que pretendiam os revolucionários de 1817, a reforma em andamento foca mais na
simplificação da legislação dos tributos do que na diminuição dos impostos ou
na melhor partilha da arrecadação entre a União e os Estados. “A reforma de
hoje significa tirar de um canto para colocar em outro. Isso sem perder
arrecadação. É uma carga de País desenvolvido, mas com um retorno de serviços
públicos muito baixo”, critica o professor do departamento de economia da UFPE,
João Policarpo Lima.
Para conseguir
avanços no Pacto Federativo Luiz Otávio Cavalcanti avalia que há condições de
reverter o quadro atual e sugere um caminho político. “Não estou defendendo a
Confederação do Equador, mas defendo a Confederação do Nordeste. O que seria?
Seria todos os Estados se unirem em torno de uma agenda comum, um projeto
comum. Se a bancada nordestina é tão poderosa a ponto de eleger a mesa da
Câmara ou de indicar ministros de Estado, por que a gente não se une programaticamente
para promover mudanças?”
DEPENDÊNCIA
Durante esses dois
séculos, segundo Cavalcanti, o Nordeste manteve-se dependente. Primeiro em
razão dos interesses lusitanos e atualmente com a política econômica do País,
que beneficia a indústria paulista. Ele afirma que a legislação alfandegária do
País prejudica Estados nordestinos, ao erigir uma barreira fiscal e tributária
que dificulta a importação de bens produzidos no exterior.
“Isso torna a região
cativa dos produtos fabricados pela indústria paulista. Compramos assim
produtos mais caros e de menor qualidade, em vez de termos acesso a bens
produzidos na Europa e Estados Unidos. Então, o que existia na época era o
colonialismo, o que existe hoje é o neocolonialismo interno”.
É fácil compreender
a comparação feita por Cavalcanti: a situação econômica de Pernambuco se agravara com a seca de 1816
(veja matéria na página 18), que reduziu a produção de açúcar e algodão. Ao
lado disso, produtos pernambucanos
passaram a conviver com a concorrência de outros países, com forte impacto na
mercantilização da produção local.
Outro motivo de
grande contestação dos revolucionários eram os privilégios cedidos aos
portugueses e amigos da Corte. O presidente da Fundaj ressalta que essa mesma
crítica direcionada aos lusitanos hoje se volta contra parte da classe
política. “Havia certos privilégios no Império e continuamos com alguns deles
na República. Isso é inadmissível. Mudamos de século duas vezes. Mudamos de
regime político. Mudamos o perfil da sociedade e continuamos mantendo os
privilégios”. Exemplo disso, segundo Cavalcanti, é o foro privilegiado. “Existe
coisa mais antiga do que isso? O indivíduo que se esconde através dele se torna
um clandestino político”.
Apesar da
indignação, ele destaca que mesmo em meio à crise nacional, as instituições
seguem funcionando e que para construir a estrada que o País vai atravessar
será preciso respeitá-las e observar todos os avanços e desdobramentos da
operação Lava Jato. “Temos que percorrer toda a cartilha da Lava Jato e garantir que esse processo se dê dentro dos
limites constitucionais”, prenuncia.
Com o clamor social
pela discussão desses problemas que persistem desde o período revolucionário,
há um processo em curso de mudança, na opinião de Cavalcanti: “1817 foi uma
época de revolução, 2017 é uma época de reforma. Como não resolvemos os
problemas na profundidade que deveríamos ter resolvido, temos que ser capazes
de fazer a reforma que não conseguimos fazer com a revolução”, sentencia o
presidente da Fundaj.
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