Exmo. Sr. Governador
do Estado, Minhas Senhoras, Senhores: Celebrando festivamente o primeiro
centenário da revolução de 1817, o EstadAde Pernambuco e os Estados vizinhos em
direção ao norte, porwide ela se propagou, a saber, Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará, perdendo de intensidade à medida que se afastava do seu centro
de propulsão, prestam adequada e merecida justiça aos que lutaram, sofreram e
morreram pelo seu ideal político, que foi um ideal de liberdade. Nem se pode
acoimar de tardia essa justiça: os mártires de 1817 foram venerados desde o
primeiro dia e os seus vultos crescendo sempre na tradição popular. O recuo de
um século não é demasiado para dar a essas figuras as devidas proporções
históricas, que entretanto as não privam do relevo adquirido.
O Estado de
Pernambuco nomeadamente recorda e comemora por esta forma solene a sua
iniciativa prática no movimento da Independência Brasileira, cuja data
auspiciosa o Brasil inteiro se dispõe a saudar dentro em pouco. Tal iniciativa
assentava aliás perfeitamente a gente que no século XVII defendera com singular
desassombro a soberania portuguesa neste hemisfério e lograra conservar intacta
a integridade da nação que se estava formando através de variadas peripécias,
todas se cifrando na conquista, mediante a penetração pelos exploradores dos
sertões, da imensidade territorial à qual já cabia o nome de Império antes que
a esta denominação se recorresse para mostrar que o nosso país não constituía
mais um reino pelo puro direito dinástico, mas uma nacionalidade regida por um
governo de aclamação popular na forma monárquica e hereditária.
Estaria a capitania,
que os democratas de 1817 pretenderam subtrair à autoridade real e ao domínio
lusitano, em condições de constituir um Estado independente c uma comunidade
republicana?
A pergunta impõe-se;
impunha-se desde logo, mas entretanto só agora parece possível responder a ela
ou pelo menos esboçar uma opinião a respeito.
O Padre João
Ribeiro, a mais notável e a mais tocante das personagens da revolução, teve a
pronta intuição de que era pouco viável a organização autônoma de tantas
pequenas repúblicas. Elas deviam formar constelação, ligar-se por laços
políticos indissolúveis e consagrar essa união erigindo uma capital
geograficamente central.
O historiador da
revolução, o Monsenhor Muniz Tavares, cujo trabalho o Instituto Arqueológico
acaba de mui oportunamente reeditar, duvida mesmo, apesar dos seus sentimentos
acendradamente democráticos, que a experiência fosse feliz, julgando-a antes têmpora.
Ele não só chama a atenção, com agudo senso sociológico, para o perigo de
transplantarem-se instituições estrangeiras sem levar em conta o espírito local
que poderá achar-se ou não em situação capaz de perfilhá-las, e rende homenagem
insuspeita à bondade do monarca que viera erguer seu trono sob o céu dos
trópicos, como declara concordar com o mártir José Luís de Mendonça em que a
mudança instantânea da escravidão à liberdade representa um salto mortal. Seria
aliás possível conceber uma democracia associada à instituição servil?
A democracia
americana tentou semelhante consórcio, por uma manifesta contradição, em
virtude da qual o Sul conservava toda a gente de cor na escravidão ou no
aviltamento, quando a Declaração da Independência, bebida por Thomas Jefferson
na filosofia francesa do século XVIII, proclamara que todos os homens tinham
sido criados iguais.
Um historiador
americano escreve porém que os seus patrícios daquele tempo nem eram todos
iguais, nem o queriam ser. Os nossos revolucionários quereriam bem sê-lo, mas
não ousavam, medindo suas responsabilidades do momento. Eles acreditavam que o
Governo cabia aos capazes antes do que aos ricos e à gente bem nascida, e no
íntimo de suas almas tanta repugnância havia à propriedade do ser humano que o
cônsul de S. M. Britânica escrevia oficialmente, a 12 de março, que estava
assente a abolição do tráfico negreiro (ii is given that the slave trade is to
be abolished.)
O conceito expresso
por José Luís de Mendonça sobre o perigo de uma brusca transição política podia
tão pouco ser refutado pelos argumentos da razão, que Domingos José Martins
quis, para combatê-lo, recorrer à violência, recurso de que de ordinário lançam
mão precisamente os que não têm razão.
Em todo movimento
político se desenham estas duas correntes — a dos moderados e a dos exaltados;
em toda revolução se contrapõem os audazes aos timoratos. José Luís de Mendonça
era destes; Domingos José Martins pertencia ao número daqueles, que são
habitualmente os que levam a melhor. Os jacobinos da Revolução Francesa
destruíram * os girondinos — Lamartine narrou esta patética história em termos
que fizeram o deleite das nossas leituras juvenis —; os convencionais
sobrepuseram-se aos constitucionais pelo processo radical da eliminação, até
que tiveram de dobrar a cerviz sob a férrea mão de um general que era ao mesmo
tempo um estadista e restituiu à França deliquescente a reorganização vigorosa
de que ela carecia.
Entre nós a
violência não chegou na prática a substituir a brandura: não tivemos um sistema
de terror. Eram revolucionários um tanto originais esses que conservaram nos
seus postos os funcionários públicos do regímen colonial; que não se deram ao
luxo de fuzilar nem enforcar adversário algum; que respeitaram escrupulosamente
os cofres do Estado, deixando-os intactos aos inimigos, tendo os membros do
Governo começado por declarar que abriam mão de todo vencimento. Não há dúvida
que tal governo provisório pecava pela excentricidade!
A insurreição de 6
de março, que tem sido tratada de imprevista mas que na verdade o não foi, pois
que a antecedeu longo preparo no seio de sociedades secretas, viu-se levada de
vencida e apagada sua modalidade republicana, não tanto porque faltasse ao povo
— como de fato faltava — educação para compreendê-la e defendê-la
conscientemente, como porque provaram ser fracos os recursos próprios cora que
se afoitaram seus dirigentes e provou ser grande o desamparo que se lhes
deparou de fora. Faltaram-lhe os que, dentro mesmo do Jfcís, se achavam
comprometidos numa solidariedade que se esfarelou quando se malogrou o levante
concertado, e faltaram-lhe os que no estrangeiro, melhor dito, no resto da
América, andavam pelejando por idênticos anelos ou já os tinham realizado.
Se não havia ainda
no Brasil um sentimento nacional, que só anos depois aprenderia a formar-se,
não admira que não existisse a garanti-lo um sentimento continental. Pouco
importa entretanto para a celebração do grande acontecimento histórico — o
maior no seu gênero dos fastos brasileiros — a circunstância da república não
haver então vingado, ou mesmo que não estivesse em grau de vingar. O gesto foi
belo, e já houve quem dissesse que o gesto é tudo. Nem careceria neste caso que
assim fosse.
O movimento de 1817
continha mais do que um gesto: tinha em si a essência dos movimentos
regeneradores. Paixões decerto as encerrava, visto que a paixão e o interesse
são inseparáveis das criações humanas, mas purifica-o destas faltas a rajada de
idealismo que o sacudiu. Elementos antagônicos chocaram-se nessa ocasião: as
forças conservadoras e as forças liberais pugnaram entre si e naturalmente
acusaram-se de sombrios intentos.
Na verdade, nem as
listas de proscritos, que o capitão-general encheu ao tocar o seu auge a
conspiração a que êle fechara os olhos por longanimidade e de cálculo, eram
vastas como o quiseram fazer crer as proclamações dos rebeldes, nem estes, ao
pegarem em armas, se mostraram movidos pelo ódio que se não sacia com pouco
sangue, e apenas pelo vivíssimo desejo de converterem numa realidade o seu
sonho de governo autônomo e responsável exercido em nome da soberania popular.
A mudança que quase
podemos capitular de evolutiva, da capitania dependente para Estado
independente, custou muito menos vidas e sobretudo muito menos barbaridades do
que motins promovidos pelo tempo adiante sem um ideal que os justificasse, sem
um programa tão compreensivo, tão levantado, tão construtivo, tão próprio de
homens à altura da direção de um Estado como esse que consta da Lei Orgânica ou
conjunto de disposições constitucionais, oferecido ao exame e discussão das
câmaras municipais.
É difícil saber
exatamente quantas vítimas causou o 6 de março. Nunca se chega a apurar essas
coisas. O cálculo orça entre 16 e meio cento. A legação inglesa podia mandar
dizer para Londres com justiça, conforme consta da sua correspondência, que a
revolução procedera com a maior moderação e compostura, poderia até ter
acrescentado com a maior honestidade e clemência. Este será aliás seu título
máximo e perene de glória.
Devemos à equidade
ajuntar que tampouco existia deliberada e cruel tirania, por mais desumana que
possa depois ter sido a repressão brutal e descaroável. As faltas, os atrasos,
os abusos, as prepotências mesmo que se notavam eram o fruto da autoridade
exercida sem o contrapeso ou antes o freio da sanção popular. Escusado é
portanto procurar ódios irreconciliáveis que não lavravam, porque não ouso
qualificar de tais antipatias por mais alvoroçadas que chegassem a ser, entre
gente da terra e gente de fora, entre o elemento nacional, que se apresentava a
reivindicar seus direitos de maioridade, e o elemento europeu, quer dizer
português, que pretendia conservar o outro numa dependência que este julgava
prejudicial, sob uma tutela considerada humilhante.
A revolução de 1817
foi, bem examinada, muito mais do que um movimento local: foi um movimento
nacional. Geograficamente circunscrita, amplia-se sociologicamente. .Nacional
era o seu pessoal: promoveram-na e ampararam-na os fatores da inteligência, da
atividade e da riqueza do reino brasileiro — padres, oficiais e agricultores.
Combateram-na e venceram-na fatores também da riqueza, de atividade e de
inteligência — comerciantes, generais e magistrados — mas todos estes impregnados
de um espírito que já era estranho ao corpo que pretendia animar, um espírito
de exclusivismo, de predomínio e conseguintemente de compressão.
As crueldades da
reação, que por longo tempo eivaram de ressentimento o coração pernambucano,
foram a manifestação do desespero da causa para sempre batida, de cujo fim se
suspeitava e que por isso mesmo se apegava à última tábua de salvação, que é
sempre a do extermínio. Os homens são assim feitos que se persuadem que levam a
melhor quando calcam o adversário aos pés; pelo contrário, muito mais proveito derivariam
de congraçar-se com ele, de juntos cooperarem para a felicidade humana.
Se a revolução
tivesse vingado e houvesse estabelecido um governo permanente, os interesses
conservadores ter-se-iam deslocado e passado a celebrar novos acordos: assim os
agricultores eram pela manutenção da escravidão, que aos idealistas logicamente
repugnava. O Padre João Ribeiro, como José Bonifácio, achava iníqua e imoral a
instituição servil; mas a crença geral era que a exploração do solo dependia
absolutamente do trabalho escravo, e que a abolição seria a ruína econômica do
Brasil. A revolução contemporizou; nem espanta que assim houvesse procedido,
porquanto agir diversamente seria cavar desde logo sua ruína.
Quanto deveria isto
ter custado ao Padre João Ribeiro, não teve ele desgraçadamente tempo de no-lo
deixar dito; mas podemos imaginá-lo com precisão porque no seu cérebro se
aninhara, abrira as asas e voejava uma só ideia — a ideia do progresso humano
indefinido, com que sonhara Condorcet. Iluminado, chamou ao nosso patrício o
observador francês a quem devemos, por um feliz acaso, que o fez estacionar
entre nós no ano de 1817, a crônica vivida do movimento que estamos recordando.
Vidente, ele na verdade o foi e o futuro apenas poderá dizer quanto havia de
previsão e acerto nos seus devaneios filosóficos, em que a grandeza da pátria
se combinava com o bem-estar individual dos que a compõem.
A igualdade estava
bastante nos hábitos, mas não estava ainda nos espíritos, ou por outra a
igualdade aparecia como o resultado natural da fusão das raças a que o
colonizador português se entregara com tanto amor quanta repugnância ou
hipocrisia nisso punha o colonizador saxão. Que igualdade mais completa do que
a de formar descendência de todas as cores! Completá-la nos códigos; torná-la
civil e politicamente perfeita seria apenas o seguimento de uma tarefa muito
bem iniciada.
A república de 1817
foi coerente nos seus métodos, instituindo o vós: não se atreveu porém a ir até
o tu da Revolução Francesa. As fórmulas cerimoniosas da linguagem portuguesa
repeliram transição tão brusca, e as excelências e senhorias voltaram a
prosperar sob este céu ameno, tão favorável à sua pujança.
O gênio do nosso
idioma ficou sem esse desvio e os clássicos podem decididamente dormir em paz,
que a república de 1889 fez todos cidadãos sem os obrigar a intimidade de
tratamento.
Havia de resto um
quê de convencional, de artificial nessas adaptações de fórmulas estrangeiras
que tão mal condiziam com as tradições nacionais: de fórmulas e também de
instituições. É verdade que se se fosse a respeitar religiosamente as
tradições, nunca se alteraria coisa alguma, e a condição do progresso não é por
certo a imobilidade. Os homens de 1817 só não queriam caminhar com demasiada
precipitação. Nutriam-se eles pela maior parte de teorias, mas queriam conceder
algum tempo à sua aplicação, à sua transformação prática. Por isso sua obra de
algumas semanas pouco pôde ultrapassar a fase negativa: o que houve de positivo
quase que não passou da preocupação primordial da defesa. A organização
constitucional mal podia verificar-se em plena agitação militar, a qual teria
por termo a inócua ditadura de Domingos Teotónio, após dissolver-se a
pentarquia, em que Domingos José Martins foi o espírito de ação, a mola real, o
Padre João Ribeiro o fanal projetando sua concepção democrática sobre a marcha
a seguir, e Correia de Araújo o elemento resignado, antes passivo, que em todas
as revoluções forma a massa flutuante, pronta sempre a saudar a reação.
Houve contudo um
esboço de organização política, baseada na liberdade de cada cidadão; pode
assim dizer-se que houve um ensaio de democracia, a qual pressupõe tal
liberdade. E esta doutrinariamente chegou a estender-se ao negro: não se
limitou ao branco. Uma das proclamações do governo provisório ousava afirmar
que a suspeita de abolicionismo era uma suspeita que honrava esse governo, o
qual não queria enganar pessoa alguma e não trepidava em descobrir que o
coração se lhe sangrava ao ver tão longínqua uma época tão interessante. Não a
queria porém prepóstera — estou repetindo suas palavras —, e por mais horror
que lhe inspirasse o cancro da escravidão — uma locução que o abolicionismo
retomou dezenas de anos depois —, como o seu senso político lhe aconselhava
prudência e habilidade, a junta patriótica de 1817 traçou ao Brasil futuro o
programa da emancipação "lenta, regular e legal".
Foi assim que o
Brasil imperial a compreendeu e a praticou, dando ao mundo um exemplo de tino
administrativo. A república de 1817 foi entretanto quem indicou o caminho, e no
dizer do seu cronista Muniz Tavares, bastaria esse seu ato para fazer-lhe
perdoar seus erros. Quantos são realmente os governos que como esse, na
expressão do referido historiador, "não se valeu de subterfúgios no
anúncio da verdade"?
Conspirava aliás
contra a liberdade dos brancos o status político existente, já porque o
orientava a idéia então comum de autocracia, já porque uma fração da comunidade
se considerava privilegiada com relação à outra e era a que, oriunda do Velho
Mundo, sujeitara o Mundo Novo e deste fizera campo de exploração, julgando-se
com mais direitos, com títulos aos proventos e às posições, superiores aos dos
que tinham visto a luz nesse meio assenhoreado.
A rivalidade entre
filhos da metrópole e filhos da colônia, que é o remate usual desses
prolongamentos de nacionalidade, tornava cem vezes mais pesadas as
contribuições a satisfazer e levava os motivos econômicos a figurarem entre as
causas da revolução. Não foram contudo os decisivos porque só os motivos morais
são capazes de fornecer pasto ao sacrifício. A fome pode ser conselheira de
levante, mas não é inspiradora de martírio. O déspota venezuelano Castro, com
quem tive o prazer de tratar, opinava até que convinha manter o povo indigente,
porque os esfomeados não possuem fibra para revoltar-se, ou pelo menos para
sustentar uma revolução.
Nós estamos
acostumados a pensar literariamente de modo diverso, que o desespero da fome
não conhece obstáculo, mas há que tomar em consideração opiniões de um
especialista cacatar-lhe a teoria.
Se não foram as
causas econômicas as predominantes, foram-no então as morais, e de fato o
ensaio geral de autonomia que o país estava tendo dera-lhe, juntamente com a
tendência geral das idéias políticas e com o exemplo dos Estados Unidos, a
consciência da sua independência. O governo de Dom João VI aparelhara o Brasil
para a vida pública na modalidade nacional; a república completaria
condignamente essa obra — assim pensavam os que conspiravam e tramavam a
libertação. O progresso humano é feito de forma que todos cooperam para êle,
voluntária ou instintivamente, c até contra a vontade.
Este resultado é
seguro: a terminologia política pouco faz ao caso, contanto que o Governo seja
representativo no nome. As eleições sem base popular, se tivessem sido
introduzidas cm 1817 — o que era fatal, se a revolução houvesse vingado —,
seriam as mesmas que foram posteriormente, com o intervalo da experiência
honesta da eleição direta, e que continuam pela maior parte a ser, indiferentes
ao regímen, seja este monárquico ou republicano.
A revolução de 1817
foi a obra de uma minoria decerto: todos os movimentos dessa natureza o são.
Mas na minoria em questão figuravam em largas proporções o elemento
especulativo e o elemento ativo. A revolução que celebramos não se pode talvez
dizer que fosse levada a cabo pelo clero e pelo Exército; foi porém uma
revolução de padres e de oficiais seduzidos por uma miragem.
É sempre possível
encontrar em todo levantamento motivos de interesse pessoal, a serem contados
entre as razões do estômago; mas as razões do cérebro ou porventura do coração
foram sem dúvida aí mais poderosas e mais eficazes. Questões de patentes e de
dízimos poderiam contribuir, mas nunca seriam bastantes para levar tantas
pessoas a jogarem suas vidas. Seu influxo foi deveras diminuto, e o contágio
que se estabeleceu foi o contágio da liberdade, que é o que torna este
movimento altamente sugestivo e o fará sempre relembrar com desvanecimento pela
terra que lhe serviu de teatro.
Os que o dirigiram
compreendiam e mediam todo o seu alcance, apesar de em parte obedecerem a
instintos menos generosos tais como os produzidos pelo ressentimento. Na
verdade mais o impedia a feição ideal do que a feição positiva. Aqueles
dirigentes eram sem exceção sonhadores de uma democracia sem jaça: militares,
civis e religiosos, algumas dezenas de padres e frades de vida pouco canónica,
esquecidos do celibato, afeitos aos conchegos de família, dividindo entre
Marília e a pátria o seu ardor espiritual. O encarregado de Negócios da França,
que era um reacionário bourbônico, trata num dos seus ofícios o Padre Roma de
celerado, por ter filhos; a expressão é forte e não a merecem absolutamente
sacerdotes que não esqueciam em todo caso os preceitos evangélicos e praticavam
a caridade, dando o exemplo da sobriedade, da cordura e da abnegação.
Não é mister ser mui
velho para se ter conhecido exemplares dessa raça de clérigos políticos cuja
fama se estendera mesmo além-mar, pois que a propósito de um deles, letrado de
reputação, me perguntou um dia, assustado, o grande folhetinista português
Júlio César Machado, se realmente o padre fora, como lhe tinham contado,
bandido. Respondi-lhe que não, a menos que lhe pudesse valer tal designação sua
participação ativa cm lutas políticas, no decorrer de uma das quais corria o
rumor que o aludido sacerdote fora visto abandonando a galope de cavalo uma
vila saqueada e carregando na garupa uma moça que raptara. Júlio César Machado
concordou comigo que furtar moça não constituía requisito bastante para ser
bandido.
A revolução de 1817
mostrou duas coisas ainda: a vaidade, que pelo tempo adiante se tornaria quase
mórbida, dos inesgotáveis recursos brasileiros, para utilizar os quais é
entretanto preciso muito esforço e muito trabalho — os chefes do movimento
proclamavam, como os do Risorgimento italiano, que o Brasil fará da sé — e
certo espírito de organização civil que não teve infelizmente tempo para
acentuar-se, mas que aflorou de dentro da insurreição militar com a representação
das classes na junta, de um modo prometedor para o futuro da administração
autônoma que, sob a Regência e o Império, afastou a preponderância que o 7 de
Abril — não tanto o 7 de Setembro — tinha dado ao elemento militar no Governo.
Caracterizou além
disso o movimento um escrúpulo, perfumou-o uma honestidade que nem sempre
depois distinguiu a gestão dos negócios públicos. Os membros do governo
provisório logo de começo declararam, conforme vimos, que não receberiam
vencimentos: bastava-lhes a consciência do dever cívico, cumprido por isso
mesmo com tanto maior ufania. A democracia não era para eles uma palavra vã —
mesmo porque democracia não quer dizer o governo da plebe (este é demagogia) e
sim o governo para o povo e pelo povo, a saber, dos que o representam e o
guiam.
Juntamente com essa
probidade, os homens de 1817 foram notáveis pela tolerância, também nem sempre
posteriormente praticada. Eles próprios foram as vítimas interessantes e
lastimáveis de crudelíssima repressão. Mal mereciam todavia alguns deles que
neste antigo campo do Erário, depois Campo da Honra e hoje Praça da República —
onde se ergue o teatro em que nos reunimos para festejar-lhes a obra
imorredoura evocando suas figuras patéticas — seus corpos se tivessem balouçado
na forca antes de serem mutilados e arrastados à cauda de cavalo para a vala
dos supliciados ou para a escuridão das catacumbas.
O Brasil não conta
caracteres mais elevados nem espíritos mais atraentes: a humanidade não conta
mártires mais dignos de piedade c de veneração. Seu sangue generoso cimentou
nossas tradições, às quais a luta contra os holandeses outorgara foros de
reivindicação patriótica, e deu-lhes uma consistência e uma vibração que não
mais se poderão extinguir.
A reação imediata
foi assinalada por uma dureza, uma selvageria, um delírio de punição, que não
mereceriam indulgência, se o tempo se não encarregasse de abrandar todos os
sentimentos c ainda mais os de ódio que os de admiração. Quem hoje verbera as
ambições de César quanto as de Napoleão? Quem hoje abomina as crueldades de
Nero quanto as de Luís do Rêgo, com quem os patriotas costumavam compará-lo?
Nero poderia vir passear entre nós que apenas causaria sensação pelo seu
monóculo de esmeralda, ao passo que Luís do Rego não andaria muito seguro de
não encontrar um novo João Souto Maior.
A indulgência há de
porém vir para os algozes de 1817, dessa revolução quase única na História que,
o dizer do mais filósofo dos nossos historiadores da atualidade, o Sr. João
Ribeiro, não concedeu lugar conspícuo a nenhum desacreditado, não tendo contado
um só dirigente que mentisse às suas convicções, por baixo interesse, ou que
infamasse o seu nome por sórdida conveniência — revolução em que as ambições
foram quase nenhumas c o amor da pátria foi quase tudo.
Responsabilizar-se-á
então a época e suas ruins paixões para desculpar um tanto aqueles que num dado
momento encarnaram as piores dentre estas. Se seus crimes não saírem
justificados da prova, ficarão pelo menos atenuados. O que há de entretanto ir
sempre crescendo é a nossa veneração pelos mártires de há um século, o culto
desses apóstolos do amor da pátria, cuja memória viverá para sempre em
Pernambuco e em todo o Brasil pela elevação moral de que eles deram mostra na
adversidade. Suas frases lapidares na ocasião do suplício — sejam tais frases
rigorosamente autênticas ou tivessem sido sujeitas a um arranjo póstumo que
lhes não altera a substância — constituirão versículos de um evangelho de
liberdade c de paz — evangelho ensopado no seu sangue, sangue derramado, não
numa luta inglória por primazias do poder, mas numa luta fecunda pelo triunfo
da dignidade humana, por tudo quanto enobrece o cidadão e o torna apto para a
vida numa democracia.
Família e terra
natal eram as duas grandes preocupações daqueles espíritos de poucos refolhos e
muita sinceridade. O mais calculista deles, Domingos José Martins, horas antes
de marchar para a execução, compunha no cárcere estes versos que dão toda a
psicologia da geração heroica de 1817:
Meus ternos
pensamentos, que sagrados Me fostes quase a par da liberdade. Em vós não tem
poder a iniquidade: À esposas voai, narrai meus fados! Dizei-lhe que nos
transes apertados, Ao passar desta vida à eternidade, Ela nalma reinava na
metade. E com a Pátria partia-lhe os cuidados. A Pátria foi o meu númen
primeiro, A esposa depois o mais querido Objeto de desvelo verdadeiro. E na
morte, entre ambas repartido, Será de uma o suspiro derradeiro Será de outra e
último gemido.
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