1817: Revolução com
as cores de Pernambuco
A Revolução 1817
completa dois séculos, nesta segunda (6), mas ainda é episódio pouco explorado
na história do Brasil
Eram 10h da manhã do
dia 6 de março de 1817 e o clima no Recife parecia calmo. Sinais de
insatisfação com a Coroa Portuguesa vinham sendo emitidos, mas nem de longe se
tinha a sensação de que estava prestes a irromper um dos movimentos mais
emblemáticos da história pernambucana. Uma hora depois a aparente tranquilidade
foi cortada com golpe de espada. O sangue derramado sobre o peito do brigadeiro
Manoel Joaquim Barbosa de Castro foi o estopim para o início da revolução, que
vinha sendo maturada em fogo brando, mas que explodiu antes da data prevista.
Pela cidade, ressoavam os gritos de “Viva a Pátria! Mata Marinheiro!”. Era
desse modo que os brasileiros se referiam aos portugueses. A essa altura, nos
primeiros disparos, o governador da província já tinha fugido para se abrigar
no Forte do Brum, de onde sairia direto para o Rio de Janeiro. Os revoltosos
montaram um governo provisório e deram a chance ao governador de sair da
província sem confronto. Apesar de registros o apontarem como bom
administrador, a coragem não era traço marcante da personalidade de Caetano
Pinto.
O relato da cena foi
contado há 200 anos pelo comerciante francês Louis-François Tollenare, que
viveu no Recife entre 1816 e 1818. Nesta segunda-feira (6), a revolução
completa dois séculos, mas ainda é um episódio pouco explorado na
historiografia brasileira.
Em 1817, o caldeirão
da insatisfação fervia na província de Pernambuco, que tinha histórico de
movimentos nativistas, como a expulsão dos holandeses (1654) e a Guerra dos
Mascates (1710). O desembarque da Família Real no Rio de Janeiro em 1808 só
aumentou a fervura da indignação. Havia uma forte discrepância social entre a
vida na Corte e nas províncias – o que se arrecadava aqui era enviado para o
Rio a fim de manter o estafe de Dom João VI. Fora isso, uma seca devastadora
assolou a região em 1816, no mesmo momento em que a produção de açúcar em
outros países fez o preço do produto nordestino despencar. “Paga-se em
Pernambuco um imposto para iluminação do Rio de Janeiro, quando as do Recife ficam
completamente às escuras”, descreveu o inglês Henry Koster, que viveu no Recife
no período.
E foi neste caldo
que a luta estourou.
Não à toa, a revolta
também é chamada de Revolução dos Padres, uma vez que o Seminário de Olinda foi
o nascedouro do movimento. Letrados e com acesso à informação, os religiosos
tiveram papel crucial na formação do governo provisório, que durou 75 dias. O
padre João Ribeiro, um dos líderes do movimento, tinha uma biblioteca fora dos
mosteiros e abria o espaço à comunidade, conta Betânia Corrêa de Araújo,
presidente do Museu do Recife. No Forte das Cinco Pontas, onde funciona o
Museu, estreia dia 12 uma exposição sobre o período.
“A Revolução
Republicana de 1817 se destaca não só por ter sido o primeiro movimento efetivo
no sentido da independência do Brasil, mas também porque foi a única
insurreição anticolonial que conseguiu tomar o poder em toda história da
monarquia portuguesa”, explica o historiador George Cabral, professor da
Universidade Federal de Pernambuco e presidente do Instituto Arqueológico
Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).
Apesar da onda de
insatisfação à época, o movimento vinha sendo pensando para a Semana Santa de
1817, em abril, mas foi adiantada por causa de um decreto de prisão emitido pelo
governador Caetano Pinto Montenegro. A lista vazou e os revolucionários
reagiram à ordem. A morte do brigadeiro por Leão Coroado deflagrou o movimento.
A partir daí,
instalou-se o governo provisório que tomou várias decisões para garantir os
direitos de cidadania e as liberdades individuais dos novos republicanos –
formado em sua maioria pelos senhores de engenho, padres e comerciantes. Uma
lei orgânica com 28 artigos norteou os revolucionários e a liberdade de
imprensa foi uma das conquistas. O Preciso foi um panfleto divulgado na época que
propagou a revolta.
Outra marca presente
até hoje é a bandeira de Pernambuco – composta por um fundo azul e branco.
Sobre a faixa azul, figuravam um arco-íris, como símbolo da união, três
estrelas (representando Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte) e o sol da
liberdade.
ESCRAVIDÃO x
ABOLICIONISMO
Embora embebida dos
ideais da Revolução Francesa, que estourou 28 anos antes, a Revolução de 1817
não tocou no regime escravocrata. O tema é, inclusive, alvo de discussão na
academia. Os líderes tinham ideias abolicionistas, mas para levar o pensamento
adiante era preciso romper com o status quo da época. “Era algo muito
capilarizado e mexer nesse estrutura era tocar em algo essencial dessa
sociedade e é onde se encontram os limites da revolução. Havia boatos que iriam
abolir a escravidão, mas o governo provisório precisou publicar uma nota
informando o contrário”, explicou Cabral. No texto, o governo dizia: “A
suspeita de vocês muito nos honra, porque a escravidão é ruim, mas vamos
respeitar as propriedades privadas, mas desejamos abolir a escravidão
gradualmente”, pontua o professor.
“A escravidão é o
grande bode na sala da Revolução Pernambucana. Seus documentos defendiam ideais
republicanos e liberais, inspirados pela Revolução Francesa, e propunha que
todos os seres humanos nasciam livres e com direitos iguais. Apesar disso, em
momento algum as proclamações de 1817 sugerem o fim do tráfico negreiro ou a
abolição. O motivo é bem simples: alguns dos principais líderes do movimento
eram senhores de engenho. Pertenciam, portanto, à mais fina flor da
aristocracia rural escravagista da época. Um dos filhos do líder revolucionário
Domingos José Martins, homônimo do pai, se tornaria alguns anos mais tarde o
maior traficante de escravos na costa do Benin, na África, onde até hoje existe
uma numerosa família de descendentes dele. Havia, claro, gente com simpatias
abolicionistas no movimento, mas o tema era explosivo demais para ser defendido
publicamente”, destaca o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor do livro
“1808” sobre a chegada da família real portuguesa ao Brasil.
Foram 75 dias da
República Pernambucana, que caiu por terra diante da falta de apoio das outras
províncias, pelas falhas na organização militar do território e por
contradições internas, mas os princípios de liberdade, ética e a ampliação dos
direitos do cidadão perpassaram os séculos e continuam vivos.
Os líderes foram
mortos ou presos e documentos históricos foram destruídos a mando do Rei para
evitar novas revoltas. Pouco explorada pela história brasileira, a Revolução de
1817 é considerada de suma importância para os ideais de Independência, em
1822. Pelo seu caráter regional, Paraíba, Rio Grande do Norte e parte do Ceará
se juntaram ao movimento, mas capitularam rapidamente.
Em 19 de maio, uma
força de oito mil homens cercou Pernambuco e executou os envolvidos. Como
punição, a Coroa tirou de Pernambuco o território de Alagoas. “Celebrar o
Bicentenário da Revolução de 1817 é também relembrar a importância destes
valores para os nossos dias”, defende George Cabral.
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Revolução de 1817,
uma história ainda pouco ensinada. Na historiografia e nas escolas, a Revolução
de 1817 ainda pode ser um assunto com destaque
Diogo Guedes
A maioria dos
estudantes sabe, sem muito titubear, dizer quem foi Tiradentes, o mártir da
Inconfidência Mineira. A conspiração que tentava contestar a Coroa Portuguesa
nunca saiu do campo dos planos, mas ainda assim se tornou o símbolo da luta
pela independência do Brasil. Ao mesmo tempo, poucos sabem dizer um nome que
seja que esteve entre os líderes da Revolução de 1817: Domingos José Martins,
Padre João Ribeiro, Padre Roma, Bárbara de Alencar ou Cruz Cabugá não
significam quase nada para eles, ainda que tenham conseguido tomar o poder e
estabelecer, antes de todos, a independência e a até mesmo a República no
Brasil por mais de dois meses.
A Revolução de 1817
é fato essencial para se entender a contestação da colônia ante à Coroa. Ainda
assim, é um assunto que parece menos vivo na memória – e talvez nas salas de
aula – dos brasileiros. Para a historiadora Socorro Ferraz, o tema é de fato
pouco abordado, sintoma da falta de ênfase ao estudo da disciplina no País. “A
Revolução Pernambucana de 1817 é pouco estudada nas escolas, assim como outros
fatos da história do Brasil, porque nunca se fez um estudo do papel da
disciplina História e seus conteúdos na formação dos jovens brasileiros”,
opina. “Seria interessante se a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco
criasse algum mecanismo que pudesse avaliar o conhecimento da história do
Brasil e a expectativa dos jovens em relação ao seu País.”
Com a consolidação
do Enem, um teste nacional, nos últimos anos, assuntos vistos como “regionais”
como Revolução de 1817 são menos cobrados no exame, como ressalta o professor
de história Luiz Paulo Ferraz. No entanto, isso não significa que o movimento
não seja abordado em sala de aula: continua parte do conteúdo programático e
ainda é valorizado. “Com a instalação da Data Magna e o bicentenário agora, o
interesse está maior. Alguns estudantes conhecem até o nome de personagens de
1817, isso me chama a atenção”, aponta Luiz Paulo.
Com o também
professor Rodrigo Bione, Luiz Paulo comanda neste sábado (11/3), das 8h às
10h30, no Parque 13 de Maio, uma aula pública sobre o movimento. É parte do
projeto História ao Ar Livre, que acontece em vários pontos da cidade desde
2015. “É uma forma de ocupar a cidade com cultura, fazer com que as pessoas
conheçam mais sobre a cidade. É uma aula diferente, com música, poesia. Os
temas fogem do que abordamos em sala de aula: é uma conversa mais dinâmica”,
descreve o professor.
Para incentivar o
debate sobre 1817 nas escolas, o Governo do Estado anunciou que vai colocar a
Revolução de 1817 como parte do conteúdo programático deste ano. Até 26 de
maio, a Secretaria Estadual de Educação recebe redações de alunos de escolas
estaduais com o tema da Revolução de 1817. Também vai vai veicular campanha
educativa com vídeos feitos pelo grupo Mão Molenga Teatro de Bonecos como forma
de popularizar com o público a Revolução de 1817. Na segunda, a Biblioteca
Pública do Estado de Pernambuco inaugura uma exposição com documentos sobre o
movimento.
PERSEGUIÇÃO
A pouca difusão –
ainda mais grave fora de Pernambuco – da Revolução de 1817 não foi algo casual.
A Coroa Portuguesa mandou apagar e destruir documentos da época, pois tinha
medo de despertar o desejo pela independência. Durante o período monárquico, o
movimento foi relegado para ocultar as suas aspirações republicanas. Quando a
república chegou de fato, em 1889, a historiografia oficial brasileira já tinha
escolhido Tiradentes como herói e seguiu privilegiando os eventos do centro
econômico do País.
“A manutenção da
integridade territorial era considerada a maior de todas as conquistas da
América Portuguesa. Para a elite da época, a hipótese de uma divisão ou
separação do território era impensável. Por essa razão, a revolta pernambucana
tinha de ser rapidamente jogada no esquecimento. O quanto menos estudada fosse,
especialmente em salas de aulas, melhor”, comenta o jornalista Laurentino
Gomes, autor de obras históricas como 1808, 1822 e 1889. “E foi o que aconteceu
nos dois séculos seguintes, ou seja, um esforço deliberado para esconder o que,
na época, era considerado um mal exemplo para as demais províncias.”
Para a escritora,
psiquiatra e pesquisadora Maria Cristina Cavalcanti, autora do livro Olhos
Negros, é triste que ninguém saiba quem é o Padre João Ribeiro, por exemplo, o
líder intelectual da 1817. “Para Pernambuco, o único herói de uma revolução é
Frei Caneca. Por que um é conhecido e o outro não? Porque com Frei Caneca já
havia a imprensa para divulgar ideias. Foi a Revolução de 1817 que ajudou a
contribuir para isso, ela é, de certa forma, a mãe da imprensa livre
brasileira”, destaca a autora.
ESQUECIMENTO
Para o historiador e
cientista político Vamireh Chacon, vencedor do Prêmio Machado de Assis pelo
conjunto da obra, 1817 é pouco estudado, mas o problema é mais amplo. “Não sou
saudosista, mas os brasileiros estão se esquecendo do Brasil. Até Minas Gerais
conhece pouco a sua Inconfidência, hoje em dia”, dispara. Segundo ele, a
Revolução Pernambucana é essencial porque seu pleitos são atuais – ainda mais
quando os rumos do País estão em debate. “1817 é hoje. A Independência ainda é
hoje, a República ainda é hoje, e o federalismo da Confederação do Equador
ainda é hoje”, vaticina.
Por: Diogo Guedes
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