A República de 1817
não foi apenas pernambucana, mas se manifestou também em Alagoas, Rio Grande do
Norte, Paraíba e Ceará, em diferentes escalas, apesar de Pernambuco ser o
epicentro. Esta expressão política vigorosa deve ser compreendida no âmbito de
uma macro-região, observando-se as correlações entre capitanias e respectivas
atividades econômicas, alianças familiares, afinidades culturais, presença de
grupos sociais distintos e os interesses comerciais e administrativos que
geraram uma fissura no corpo do império luso-brasileiro quando este parecia
encontrar-se num apogeu ascendente. O movimento rompia ao mesmo tempo com a
forma de governo monárquica e com a dominação portuguesa.
A perda de prestígio
da região chamada genericamente de Norte era evidente desde que a capital da
América portuguesa fora transferida para o Rio de Janeiro cinco décadas antes,
tendência reforçada com a instalação da Corte portuguesa nesta cidade, em 1808.
No âmbito simbólico basta lembrar que a eclosão da República de 1817 adiou a
aclamação de d. João VI como rei no Rio de Janeiro. Deste modo, longe de serem
acontecimentos de âmbito localizado, tais episódios mobilizaram atenções e
forças políticas em todo o Reino do Brasil, suscitando posicionamentos e
repressões em diversos pontos do território de alcance continental.
A explicação de viés
regional, embora frequente, não é a única possível para as tensões e crises:
havia também diversidade social interna entre os integrantes e a formação de
uma cultura política de tipo moderna, liberal e democrática que servia como
catalisadora destas manifestações. Ao mesmo tempo, registra-se o caráter
híbrido dos protagonistas que, ao levarem adiante uma tentativa de ruptura em
moldes revolucionários, embasavam-se em referências tradicionais como restauração
de antigas liberdades, fidelidade à religião e regeneração da pátria. Mais do
que explosão momentânea, o ato de rebelar-se está ligado ao de revelar-se: as
rebeliões são momentos de maior visibilidade e "revelação" de
relações em (tentativa de) mudança.
Este movimento de
1817 que vigorou por cerca de três meses inspirava-se, na forma de governo, em
matrizes como o Diretório da Revolução Francesa (com sua República colegiada e
repúdio simultâneo ao absolutismo tradicional e ao radicalismo revolucionário),
bem como no federalismo norte-americano (republicano e híbrido entre
aristocracia escravista e democracia política), sem esquecer a evidente
sintonia com as guerras de independência na América hispânica.
A discussão sobre a
possibilidade de separação entre os Reinos do Brasil e de Portugal ocorre ainda
na década de 1810, inclusive, na imprensa periódica redigida em português que
circulava no território brasileiro, como o Correio Brazilliense, que, aliás,
era contra tal separação. Embora já se disseminasse em palavras, projetos,
atitudes e leituras, pelo menos desde fins do século XVIII, tal debate desponta
de maneira explícita na cena pública (que se conformava, também, por meio do
espaço impresso) em 1817, quando se mostra mais aguda a crise do império português,
com destaque também para a conspiração descoberta em Portugal no mesmo ano.
O abade, escritor e
homem público francês, Guillaume De Pradt, um dos principais teóricos das
transformações políticas ocidentais em princípios do século XIX, teve interesse
e atribuiu significativa importância aos acontecimentos de 1817 nas capitanias
brasileiras, publicando livros sobre o assunto. Eles vinham em reforço de sua
"teoria da independência", baseada em dados históricos. De Pradt
defendia que o Rei de Portugal, transformando-se em Rei do Brasil somente,
deveria apoiar a Revolução Americana, isto é, as independências nas Américas,
desvinculando-se, assim, de seu território e compromissos europeus e eliminando
um fator de risco que, para o abade, seria possível ocorrer. E citava como
exemplos a rebelião nas províncias do Norte brasileiro e a conspiração abortada
em Lisboa, como indicadores do perigo de desagregação do império português.
Para De Pradt, enfim, se o monarca lusitano adotasse tais medidas, se
posicionaria no meio de um mundo absolutamente novo.
Nesta linha, e até
de modo mais radical, estavam muitos clérigos nascidos no Brasil que aderiram à
República de 1817, conhecida até como "revolução dos padres" pela
ampla presença do chamado clero constitucional em suas fileiras, como ideólogos
e mobilizadores. Exemplo mais conhecido foi o do padre João Ribeiro, que após
bradar nas ruas "Viva Nossa Senhora! Viva a liberdade! Morram os
aristocratas!" faleceu tragicamente e teve seu corpo profanado e mutilado
pelas forças repressivas.
Apesar da memória
histórica erigir em tempos póstumos a figura de outro religioso, o carmelita
Frei Caneca, como um dos principais nomes de 1817 em Pernambuco, um exame
atento na documentação da época levanta sérias dúvidas sobre tal preeminência e
até mesmo sobre sua participação em tal episódio, apesar de ter sido preso, ao
que tudo indica, de modo arbitrário.
Os líderes saíram da
clandestinidade das lojas maçônicas ou secretas para assumir o poder em 1817. A
condenação moral do trabalho escravo, acompanhada da tolerância em relação a
este, era uma atitude comum entre liberais da primeira metade do século XIX - e
não apenas no Brasil. A posição ambivalente ou contraditória diante da abolição
da escravidão caracterizou a maioria dos revolucionários franceses, inclusive
os tidos como mais radicais. Na mesma ocasião, os governantes provisórios de
1817 esclareceram serem favoráveis à emancipação gradual, lenta e dentro da lei
que permitisse eliminar da sociedade o "cancro" da escravidão, mas não
falaram em datas, nem de longo prazo. Garantiram também que todas as
propriedades - "ainda as mais opugnantes aos ideais de justiça, serão
sagradas". Em outras palavras, as lideranças eram contra a escravidão, mas
não viam possibilidade de eliminá-la.
Entretanto, a
atuação das camadas pobres de Recife, em 1817, não se esgota no temor dos
proprietários nem nos limites de atuação dos líderes revolucionários. Há nos
documentos da época a marca da presença destes setores da população na cena
pública, ainda que sem legitimidade para tal, segundo os padrões dominantes. Em
primeiro lugar, o próprio evento da deposição do tradicional governante
monárquico e a subida ao poder de pessoas até então descredenciadas para tal
(dentro dos padrões do Antigo Regime) gerou uma quebra de autoridade.
Os tiroteios nas
ruas, a palavra "revolução" andando de boca em boca, mesmo que sem
grandes fervores da parte da maioria dos habitantes, ocasionou uma liberação de
atitudes e expressão de ressentimentos e resistências que dificilmente poderiam
vir à tona em outras ocasiões. A diversidade aflora com a eclosão das
Revoluções. Por isso, os registros indicam que na República pernambucana de
1817 passou a ser comum escravos se mostrarem insolentes ou respondões a seus
senhores, mendigos dizerem desaforos às senhoras caridosas, mulatos e negros
(livres ou libertos) começarem a se expandir e verbalizar a possibilidade de
ocuparem mais espaço naquela sociedade, etc. Daí, talvez a proclamação
explicativa dos governantes republicanos sobre a escravidão tenha ocorrido, ao
que parece, também como reação, escrita e impressa, a essas vozes, gestos,
palavras ou gritos que circulavam pela cidade, ameaçando alterar o sentido da
Revolução que estava em curso.
Ocorre neste
contexto uma presença significativa de setores oprimidos do ponto de vista
étnico ou social, no interior da revolta, por meio da atuação militar, seja em
milícias ou regimentos. Uma das figuras exemplares desta participação é a do
"pardo" (categoria jurídica e racial da época) Pedro da Silva
Pedroso, personalidade polêmica que estará presente neste ciclo de rebeliões
pernambucanas. Pedroso, à frente de um aguerrido e temido Batalhão de Pardos,
foi uma das figuras de proa daqueles tempos.
Note-se que os
rebeldes de 1817 optaram por não produzir uma imprensa periódica, apesar de
terem em mãos uma tipografia não utilizada. Mesmo levando-se em conta a recente
tradição de periodismo, então existente no Brasil, eles preferiram publicar
decretos, manifestos e proclamações avulsas.
A repressão à
República de 1817 gerou ampla documentação: foi violenta, desmedida e com
lances de maus tratos, torturas, prisões prolongadas e mortes cruéis, causando
um trauma político que custou cicatrizar, revelando a face dura do período
joanino, visto com freqüência por seus melhoramentos civilizadores. Muitos dos
sobreviventes estariam, cinco anos depois, participando da Independência do
Brasil de Portugal e, ainda, em 1824, da Confederação do Equador nas mesmas
províncias rebeldes, desta vez contra os rumos centralizadores e autoritários
do nascente Império brasileiro.
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