segunda-feira, 6 de março de 2017

30 - Relatos dos Acontecimentos de 1817 no Brasil e no Mundo


Os fatos da Revolução são bastante bem conhecidos dos que a estudaram e as partes que deles dão os Padres Muniz Tavares e Dias Martins; Oliveira Lima, nas notas a Muniz Tavares; Sylvio de Mello Cahú; Amaro Quintas; Léon Bourdon e Glacyra Leite, além do Barão de Studart e Carlos  Studart, para os acontecimentos no Ceará; e Ascendino Carneiro da Cunha, para a Paraíba, bem como diversos dos documentos coligidos em Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, são suficientes para que se tenha uma ideia bastante completa do que naquela época ocorreu factualmente no Brasil. Com base naqueles relatos, que em um momento ou outro se complementam se precisam, mas por vezes também se contradizem, esboço, a seguir, um painel do que terá sido, em seus movimentos principais, o acontecimento da Revolução no Brasil. 

A Revolução de 1817 teve seu Sarajevo no dia 6 de março daquele ano, quando um oficial brasileiro do regimento de artilharia do Recife atravessou, com sua espada, o Comandante, português, daquele Regimento. O Capitão de Artilharia José de Barros Lima, por alcunha Leão Coroado, coadjuvado por seu genro, José Mariano de Albuquerque Cavalcanti, Tenente do mesmo regimento, matou o Brigadeiro Manuel Joaquim Barboza de Castro, ao receber deste, voz de prisão, por ser considerado um dos elementos promotores de agitação na Província de Pernambuco.

Cumpria o Brigadeiro ordens do Capitão-General e Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro que, acolhendo denúncia que lhe fora feita pelo Ouvidor da Comarca do Sertão, José da Cruz Ferreira, de que tramavam os brasileiros naquela Província uma conspiração contra o poder real e os bens dos portugueses, determinara a prisão preventiva dos supostos cabeças, dez ao todo, entre civis e militares.

Já alguns haviam sido presos naquele mesmo dia, quando a reação inesperada de José de Barros Lima, imediatamente apoiado por todo o regimento de que fazia parte, precipitou a revolta. Espalharam-se os soldados e oficiais da artilharia, libertando os líderes presos, de que sobressaíam o negociante Domingos José Martins e o Capitão de Artilharia Domingos Theotônio Jorge Martins Pessoa, ocuparam os principais pontos do Recife, fugindo inopinadamente o Governador com apenas um punhado de guardas de corpo, para uma das fortalezas da cidade, a Fortaleza do Brum. O Marechal José Roberto Pereira da Silva, Inspetor-Geral dos milicianos da Capitania, esboçou uma resistência, encastelando-se, com alguma tropa que arregimentou, na Casa do Erário; mas a falta de munição e de ordens firmes do Governador, convenceram-no a capitular e ir-se juntar a Caetano Pinto na Fortaleza do Brum. Na manhã do dia seguinte, 7 de março, a cidade estava em mãos dos revoltosos, assim como Olinda, e a notícia, espalhando-se pelo interior mais próximo da Capitania, fazia começar a afluírem à capital chefes e tropas, que prestaram logo seu apoio à insurreição. Naquele dia 7, cercada a Fortaleza do Brum, um parlamentar dos revoltosos, o advogado José Luís de Mendonça, obteve do Governador Caetano Pinto uma capitulação, pela qual seria ele enviado, “com as pessoas de sua companhia”, em embarcação, para o Rio de Janeiro, responsabilizando-se os revolucionários pela segurança pessoal de todos os que estivessem dentro da fortaleza. No dia 9, Caetano Pinto partiu para a Corte, onde chegou no dia 25, confirmando-se, então, ali, a notícia da Revolução 2; o Governador, depois de avistar-se com o Ministro interino dos Negócios Estrangeiros, o Conde da Barca, foi imediatamente recolhido, preso, à ilha das Cobras.

Enquanto isso, em Pernambuco, o novo regime se consolidava com rapidez insuspeitada. Naquele mesmo dia 7 de março, foram reunidos 16 dos mais notáveis cidadãos, dos quais dois eram negros, e elegeram um “Governo Provisório para cuidar na causa da Pátria”, composto por cinco membros e representando, cada um deles, uma “parte” da sociedade: o Padre João Ribeiro Pessoa de Mello Montenegro, a eclesiástica; o Capitão Domingos Theotônio Jorge Martins Pessoa, a militar; o Advogado José Luis de Mendonça, a magistratura; o Coronel Manoel Correia de Araujo, a
agricultura; e o negociante Domingos José Martins, o comércio. No dia seguinte, 8 de março, foi criada a Secretaria de Estado ou de Governo, entregue, a princípio, ao mesmo Secretário de Caetano Pinto, o Coronel José Carlos Mayrink da Silva Ferrão (conspícuo na história de Pernambuco por ter servido, sucessivamente, a vários governos díspares, terminando Presidente da Província, nomeado por D. Pedro I), e, posteriormente, ao Padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro (o célebre e bondoso Padre Miguelinho), sendo vice-secretário o Padre Pedro de Souza Tenório. Criouse, naquele mesmo dia, um Conselho de Estado, para o qual foram designados o Ouvidor de Olinda, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva; o Capitão-Mor da vila de Santo Antônio do Recife, já então famoso dicionarista, Antônio de Moraes e Silva; o Doutor Manoel José Pereira Caldas; o rico comerciante Gervásio Pires Ferreira e o Deão de Olinda, na ocasião a maior autoridade eclesiástica da Província, Bernardo Luís Ferreira Portugal. Entregou-se, também, a Presidência do Erário ao rico cidadão Antônio Gonçalves da Cruz, vulgo Cabugá, que, ao partir de Embaixador para os Estados Unidos, foi substituído naquela Presidência por Gervásio Pires Ferreira; nomeou-se General-em-Chefe do Exército a Domingos Theotônio Jorge, e General de Divisão a Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, vulgo Suassuna, então Capitão-Mor de Olinda; e Juiz de Polícia a Felipe Neri Ferreira. Armou-se, também, um brigue de guerra para vigiar a costa; foi designado um embaixador para os Estados Unidos, e enviada correspondência à Grã-Bretanha, oferecendo a representação da nova República ali ao conspícuo jornalista Hipólito José da Costa. Despacharam-se emissários para o Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas e Bahia, tendo a Paraíba se levantado no dia 13, e constituído, ela também, uma Junta Governativa Provisória, que, sintomaticamente, reservava em seu seio um lugar em aberto para um representante a ser designado pela junta de Pernambuco. Aqueles dois governos – os únicos que se constituíram com alguma solidez, pois o do Rio Grande do Norte, e, sobretudo, o de Alagoas, foram por demais fugazes – desenvolveram intensa atividade legislativa, que se pode comprovar pelos diversos decretos e proclamações espalhadas pelos nove volumes dos Documentos Históricos, publicados pela Biblioteca Nacional, já referidos. Confeccionaram bandeira própria – no desenho da qual se previa a adesão das demais Províncias do Brasil à nova República –; desenharam uniformes para o exército e para a diplomacia; e instauraram no Recife a primeira tipografia da Província (e terceira do Brasil, onde, à época, funcionavam apenas a Impressão Régia, no Rio de Janeiro, e a tipografia de Manuel Antônio da Silva Serva, na cidade da Bahia). Elaboraram e puseram em discussão pelas vilas e cidades um projeto de Lei Orgânica que é o primeiro texto constitucional brasileiro, onde se encontram consagrados princípios como a liberdade de imprensa, a independência dos poderes, a liberdade de culto, o poder constituinte da assembleia, a responsabilidade administrativa dos governantes e a soberania popular.

A reação da Monarquia não se fez tardar, e a pronta ação do Governador da Bahia, Dom Marcos de Noronha e Brito, 8° Conde dos Arcos, foi, talvez, a responsável maior pela derrocada da súbita república no nordeste. O Conde dos Arcos teve conhecimento prévio de que estaria desembarcando, às escondidas, um enviado dos revoltosos com a finalidade de provocar o levante também na Bahia, e teve a fortuna de ver capturado, apenas desembarcou, aquele emissário, o Padre José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima, o famoso Padre Roma. Aos três dias de seu desembarque, fê-lo fuzilar o Conde dos Arcos, após sumário julgamento, e expediu uma força naval, armada às pressas, para realizar o bloqueio do porto do Recife, ao mesmo tempo em que fazia seguir por terra as primeiras tropas dos cerca de quatro mil homens que chegaria a enviar sob o comando do Marechal Joaquim de Melo Leite Cogominho de Lacerda, as quais ocupariam o Recife antes mesmo da chegada ali das tropas que na Corte se reuniriam para combater a insurreição. A pronta ação do Conde dos Arcos, por outro lado, parece ter inibido qualquer manifestação na Bahia por parte de simpatizantes do movimento, que, ao que tudo indica, não seriam poucos. Na própria Corte suspeitou-se da existência daqueles simpatizantes, e, ao se ter notícia da Revolução, um dos principais atos do Governo foi mandar proceder a uma devassa sobre os acontecimentos 3, que a muitos fez colocar na prisão no Rio de Janeiro.

A Revolução, que eclodiu súbita naquele memorável 6 de Março, em virtude de um ato de sangue, estava, de resto, sendo planejada em nível nacional, e dois dos principais líderes, Domingos José Martins e Domingos Theotônio Jorge, tinham já estado no Rio de Janeiro e na Bahia, assim como, eles ou outros também, no Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte, para tratar da conspiração contra a Monarquia.

As providências na Corte, se não se revestiram do mesmo imediatismo, em suas conseqüências, que as adotadas pelo Conde dos Arcos na Bahia, foram, entretanto, as mais drásticas jamais adotadas pelo Governo português com relação a qualquer acontecimento interno no Brasil até então. As nações amigas foram notificadas do bloqueio dos portos do nordeste, para a efetivação do qual despachou-se às pressas, sob as ordens do Contra-Almirante, ou Chefe de Divisão, Rodrigo José Ferreira Lobo, uma pequena esquadra, composta de uma fragata, duas corvetas e uma escuna, enquanto se preparava a expedição militar que, sob as ordens do Brigadeiro Luís do Rego Barreto4, reuniu, a bordo das naus Vasco da Gama e Rainha de Portugal, e de nove ou dez outras embarcações menores, quatro batalhões de infantaria, dois esquadrões de cavalaria e um destacamento de artilharia de oito peças, num total de cerca de 4.000 homens; foi enviado o Marquês de Angeja para Lisboa com ordens de trazer para o Brasil dois regimentos de infantaria – num total de “2.200 a 2.600 homens, ou, não fazendo grande falta, chegar a completar uma brigada” – dos quais um “para servir na expedição incumbida a Luís do Rego”, e a outra para ficar postada na Bahia para qualquer emergência... Ao governo inglês chegou a ser pedido, em Londres, pelo Embaixador Dom Pedro de Souza Holstein, Conde de Palmella, já a esta altura nomeado para assumir a Secretaria dos Negócios Estrangeiros, auxílio militar naval.

Em Pernambuco, completado o bloqueio do porto do Recife, e divulgando-se notícias desencontradas do avanço das tropas mandadas da Bahia, o desalento começou a tomar conta de parte da população, assolada, ademais, pela escassez de alimentos. Algumas tropas vão, sem sucesso, socorrer Alagoas e o Rio Grande do Norte, que cedo voltaram a arvorar o pavilhão real. No dia 20 de abril, de acordo com o Padre Dias Martins, “proclama-se a Pátria em perigo” e lança-se mão da convocação mesmo de escravos – pelo que seus senhores seriam indenizados – para integrarem as forças que, sob as ordens dos principais líderes militares, o General de Divisão Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque e o Tenente Coronel José Vitoriano Borges de Almeida, iriam dar combate às tropas do Marechal Joaquim de Melo, vindas da Bahia. Àquelas se juntaria ainda, mais tarde, uma tropa liderada pelo próprio Domingos José Martins – reconhecidamente o líder mais importante do movimento – que acabaria aprisionado ao final de uma refrega, no dia 16 de maio. Desde 23 de abril, o Governo Provisório se retirara da parte da cidade conhecida como o bairro do Recife para a Soledade, instalando-se no palácio do Bispado, e ficando praticamente desertos aquele bairro e o de Santo Antônio. Tornando-se insustentável a situação para os revolucionários, o Governo Provisório tenta, em 16 de maio, entrar em acordo com o Comandante do bloqueio naval, Rodrigo Lobo, mas sem sucesso; dissolve-se, então, aquele Governo, e, investindo de poderes ditatoriais, no Recife, a Domingos Theotônio Jorge, retira-se, com alguma tropa, e em certa ordem, para o Engenho Paulista, de onde, suicidando-se ali o Padre João Ribeiro, um de seus membros e outro dos principais líderes da Revolução, finalmente debandam, quando, então, no dizer peculiar do Padre Dias Martins, “acabou-se a liberdade”.

A repressão foi feroz como nunca o fora qualquer outra no Brasil7. A devassa aberta em meados de 1817 funcionou com Alçada nomeada até a publicação da Carta Régia de 6 de fevereiro de 1818, que ordenou seu término e o início imediato do julgamento dos prisioneiros com culpa formada, perdoando-se todos os demais, “exceto sendo dos cabeças da rebelião”. A partir de então, a Alçada continuou, morosa, seus trabalhos, permanecendo, em condições ignominiosas, presos, na Bahia, mais de cem acusados, à espera de um julgamento que nunca veio. Em fevereiro de 1821, em decorrência das mudanças políticas verificadas em Portugal por ocasião da rebelião do Porto, em 24 de agosto do ano anterior, foram perdoados e mandados soltar todos aqueles presos, pela Junta Provisória que no dia 10 daquele mês se instalara na Bahia.


Panorama sinótico da conjuntura internacional.

Quando eclodiu a Revolução em, 6 de Março de 1817, o mundo político que cercava a Monarquia portuguesa não era o mar de tranquilidade que se poderia supor, após a derrota definitiva de Napoleão pelas forças do resto da Europa unida, em 1815. Os entendimentos brotados no Congresso de Viena, e, logo após, com a constituição da Santa Aliança, naquele ano de 1815 (a que D. João aderiria em dezembro de 1817), se levaram uma paz momentânea ao continente europeu, não por isto significaram tranquilidade internacional para a Corte do Rio de Janeiro.

D. João, chegado ao Brasil em 1808, lançou-se a duas aventuras militares, uma das quais teve que retomar mais tarde, e com melhor sucesso: como para vingar-se de Napoleão, invadiu e ocupou Caiena, ao norte; ao sul, aproveitando-se do relativo vácuo de poder, por um lado, e temendo, por outro, com certa razão, a importação de agitações estranhas a seus domínios, invadiu o Uruguai, convulsionado por Artigas, e ocupou Montevidéu.

A ocupação de Caiena, com a consolidação da restauração bourbônica na França, foi resolvida, com a devolução acertada pelo tratado de 28 de agosto de 18171, de maneira bastante pacífica, e, mesmo, cavalheiresca. A ocupação de Montevidéu, entretanto, prolongou-se, e foi herdada pelo Império brasileiro, que, em boa parte por causa dela, se envolveria posteriormente em intermináveis conflitos na região platina. Com a invasão do Uruguai, a Corte do Rio de Janeiro criou um problema constante com as colônias espanholas já então revoltadas, que perduraria pelo Império e que por algum tempo ajudou a envenenar o relacionamento das nascentes repúblicas sul-americanas com a monarquia que se instaurava no Brasil (aquele veneno seria mais ainda alambicado pela repressão brutal à Revolução de 1817).

A ocupação de Montevidéu, por outra parte, provocou também nas cortes da Europa, sobretudo movidas pelo espírito que criou a Santa Aliança, uma interpelação conjunta sem precedentes contra a ação portuguesa. Em 16 de março de 1817, os plenipotenciários da Áustria, França, Grã-Bretanha, Prússia e Rússia, em Paris, exigiam do Governo de Sua Majestade Fidelíssima, por “Nota ao Ministro da Corte de Portugal, no Brasil”, explicações, “suficientes a seus olhos” (“suffisantes sur ses vues”), para aquela ocupação, sob pena de cair sobre Portugal a responsabilidade pelas “consequências desagradáveis que disso poderiam resultar para os dois Hemisférios” (“suítes fâcheuses qui pourraient en résulter pour les 2 Hémispheres”) e de ser, consequentemente, a Espanha, “com o apoio de seus Aliados” (“dans l’appui de ses Alliés”), ressarcida em seus danos3. A diplomacia portuguesa, sobretudo através do seu hábil Embaixador em Londres, Conde de Palmella, soube, entretanto, com tato, mas trabalhosamente, obviar a indignação pública daqueles governos, e se alguma sequela daquela ocupação ficou em Portugal, foi talvez a perda definitiva de Olivença para a Espanha. As sequelas seriam maiores, no entanto, politicamente, para o Reino, e, depois, o Império do Brasil. As patentes de corso outorgadas por Artigas, e, depois, pelo governo das Províncias Unidas, causaram respeitáveis danos comerciais. A luta contra elas teve uma página gloriosa para a história da diplomacia portuguesa, com a atuação, nos Estados Unidos, do Abade José Corrêa da Serra, então Ministro português em Washington, que obteve do Presidente norte-americano a assinatura de uma lei que inibisse aquela prática a partir dos Estados Unidos.

As vitórias sobre Napoleão, primeiro em Trafalgar, e depois, em Waterloo, deram à Inglaterra a supremacia comercial, se não política, no mundo, e a Corte portuguesa no Rio de Janeiro não poderia fugir à influência daquele poder. A respeito, afirma Hélio Vianna: “Durante todo o período de permanência da corte de D. João no Brasil, como Príncipe Regente e Rei (1808/1821), caracterizou-se a política internacional portuguesa pela estreita aliança mantida com a Inglaterra”. Essa “estreita aliança”, se trouxe benefícios, trouxe também dificuldades, e não apenas internacionais, mas também internas para o Governo português, aquém e além-mar. Um dos benefícios foi, sem dúvida, o apoio, embora, como veremos, de certa maneira contido, na repressão à Revolução de 1817. As dificuldades, porém, não foram poucas, e quase todas herdadas por, ou transferidas para – não cabe no âmbito deste trabalho esta discussão – o Império brasileiro.

A mais importante dificuldade, do ponto de vista da política internacional, foi, sem dúvida, a questão do tráfico de escravos e da abolição da escravidão. Em todas as negociações diplomáticas com Portugal, desde os tratados de 1810 até às tratativas para o reconhecimento da independência do Brasil, o assunto do tráfico é trazido à baila, e sempre como elemento de pressão sobre a parte portuguesa. O problema da escravidão, entretanto, conforme se verá na parte pertinente deste livro, tinha uma outra faceta, que era a do terror que a todo o mundo inspirava a possibilidade de virem os escravos, na América portuguesa, a imitar o gesto extremo de abolição levado a cabo pela população do Haiti.

Com efeito, depois de sangrentas lutas contra franceses, ingleses, espanhóis e entre si, que se iniciaram em 1790 e perduraram por muito tempo ainda depois da independência, os negros e mulatos do Haiti declararam, em primeiro de janeiro de 1804, sob a liderança de Dessalines, a independência da segunda ex-colônia no continente americano, tendo sido a primeira os Estados Unidos, em 4 de julho de 1776. Do ponto de vista da política internacional, a independência do Haiti trazia à cena mundial três problemas novos. O primeiro foi a destruição econômica de uma colônia que, em termos mercantis, era das mais florescentes do império colonial europeu na América; o segundo foi a criação da possibilidade palpável de vir a ter sucesso uma revolta maciça de escravos; e o terceiro, o fato de um território livre na região significar, como significou, uma base para ponto de partida de incursões de forças libertadoras contra as colônias ainda dominadas na América. Todos esses três aspectos tiveram seus reflexos no Brasil por ocasião da Revolução de 1817.

A outra importante dificuldade que a “estreita aliança” com a Grã-Bretanha trouxe para Portugal foi a que provocou o descontentamento que se instaurou paulatino, motivado pela assinatura e implementação dos tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação, em 1810, que davam, sobretudo, vantagens alfandegárias, além de outras, aos britânicos, no Brasil e em Portugal. O comércio e a indústria portugueses se ressentiram grandemente das concessões aos ingleses, que, ademais, em Portugal eram acusados de dominar politicamente o País por intermédio da Regência do Marechal Beresford. Essa situação fez medrar e crescer na metrópole a exigência da volta da Corte para Lisboa (exigência que, coincidentemente, ia ao encontro dos interesses britânicos de ter o Rei português mais próximo, e que se fariam sentir diplomaticamente, por ocasião da Revolução de 1817, conforme se verá adiante), e foi, sem dúvida, um dos motivos principais a moverem a conspiração que se tornou pública, coincidentemente, na metrópole, em 25 de maio de 1817, com a prisão de Gomes Freire.

No Brasil, a insatisfação com os efeitos dos tratados não foi pequena, mesmo entre os áulicos mais próximos a D. João, e é consagrada a ojeriza que pela Grã-Bretanha tinha o Conde da Barca, por quem o Monarca votava não pequena admiração. A animosidade contra os ingleses não era tão acentuada, porém, entre os brasileiros. A “estreita aliança”, entretanto, faria com que a Grã-Bretanha fosse suspeita aos que pugnavam e pugnariam pela independência; tal situação é patente nos primeiros passos diplomáticos dados pelo Governo Provisório de 1817 em direção aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha, conforme se verá adiante, e se refletiria, mais tarde, nas dificuldades que o próprio governo britânico teria inicialmente para reconhecer a independência do Império. Dificuldade que foi prevista, aliás, nas instruções de Carvalho e Mello a Gameiro para sua missão em Londres, ao lado de Brant, as quais diziam, no início de seu 8º item: “sendo talvez a amizade existente entre a Inglaterra e o Governo de Portugal um aparente obstáculo ao reconhecimento por aquela Potência do Império do Brasil...”.

Nos Estados Unidos, teve D. João a fortuna de dispor de um representante diplomático cujo prestígio entre as altas autoridades daquele país daria à diplomacia portuguesa uma facilidade de atuação de que poucas outras cortes dispunham em Washington. O governo norte-americano, por outro lado, via com interesse o desenvolvimento das relações políticas e comerciais com a Corte no Rio de Janeiro, e era dos poucos que dispunha de representante diplomático ali, o único diplomata, aliás, norte-americano, em toda a América, desde a indicação de Thomas Sumter, em 7 de junho de 1810, até o reconhecimento, pelos Estados Unidos, da independência das repúblicas americanas e a adoção da lei de 4 de maio de 1822 “que determinava a nomeação de agentes diplomáticos” para aquelas repúblicas. Se o governo norte-americano teve, em virtude de sua pendência com a Espanha a respeito da Flórida, e das dificuldades iniciais de relacionamento com a Grã-Bretanha após o Tratado de Gand – de que dão boa conta as memórias de Richard Rush – problemas para se definir claramente quanto à situação das colônias americanas rebeladas, a opinião pública na grande república do norte, entretanto, conforme refletida nas páginas dos principais jornais, era francamente favorável ao estreitamento dos laços, sobretudo comerciais, com as novas nações que se criavam ao sul. Essa ambiguidade se revelaria com clareza quando da missão de Antônio Gonçalves da Cruz, enviado dos revolucionários brasileiros aos Estados Unidos, em meados de 1817.

Na América espanhola, a conflagração era geral. Desde 1810, ano do levante de Bogotá, do Cabildo aberto de Buenos Aires e da revolta de Hidalgo, no México, até a independência total dos novos países do continente, a luta, militar contra as forças da Espanha, e diplomática em todas as frentes, foi constante. Para a Corte portuguesa solidamente estabelecida no Rio de Janeiro, era uma situação nova e delicada, de que soube de algum modo se aproveitar e que de algum modo a incomodou grandemente.

Incomodou-a, porque a remota tensão que nas ex-colônias espanholas se manifestava, bateu sempre a suas portas sem entrar, até que, em 1817, se manifestou em suas próprias entranhas com a força que pôde. A partir de então, o republicanismo insurrecional passou a constituir-se em permanente fantasma a espreitar a Monarquia, tanto a lusitana de D. João quanto a brasileira de D. Pedro, antes e depois da independência. Bolívar conta, em carta a Santander, que D. Pedro se regojizara publicamente ao saber de sua derrota em Matará, nos seguintes termos: “...cuando el Emperador del Brasil supo el contraste que sufrimos en Matará dijo estas palavras en la corte: que se complacía de la notícia, porque era una fortuna que el malvado Bolívar hubiese sido destruído”; e o mesmo Bolívar cogitou seriamente, contando com o apoio entusiástico de Sucre, da guerra contra o Império , por ocasião dos problemas fronteiriços de Chiquitos, na Bolívia12. O próprio famoso conselho de D. João a D. Pedro para que pusesse a coroa na cabeça antes que algum outro aventureiro o fizesse, nada mais é senão um reflexo daquele temor da chama do republicanismo que se declarara claramente no Brasil a partir de 1817, e não mais se extinguira.

De algum modo, entretanto, soube também aproveitar-se a Corte no Rio da agitação nas colônias espanholas, e a invasão e anexação da Cisplatina nada mais foi que uma ágil e bem conduzida operação, militar, e, depois, diplomática, sobre o pano de fundo do momentâneo desgoverno daquela região. As tentativas de entendimentos com o governo das Províncias Unidas – amparadas, sobretudo, pela habilíssima atuação do Deputado Manuel José Garcia junto à Corte no Rio de Janeiro13 – que levaram, na prática, ao reconhecimento tácito daquela república antes de que qualquer outro país o fizesse, são, também, testemunho da intenção de assimilar positivamente a nova situação das ex-colônias espanholas no continente.

A conjuntura internacional, dessa forma, era, conforme indiquei ao início, não pouco tranquila para Portugal e o Brasil. A constatação importante, entretanto, à vista desta breve exposição, e no que diz respeito ao presente estudo, é a de que a paz interna da Monarquia portuguesa no Reino do Brasil desde a chegada de D. João era e foi completa até à eclosão da Revolução de 1817, a partir de quando, então, ficaria patente a inserção do processo político interno do Brasil no grande quadro que já se tinha esboçado nas ex-colônias espanholas no continente. A Revolução de 1817 traria para dentro do País toda a complexidade das grandes questões internacionais do momento, até então vivida pela diplomacia portuguesa apenas em suas relações internacionais, e já agora não mais como possibilidade teórica, remota e eludível, mas como realidade palpável e indelével. Como diria, ainda durante a ebulição da Revolução no nordeste, o admirável Abade de Pradt14: “É, portanto, bastante provável que as agitações continuem no Brasil todo ou em parte dele” (“Il est donc très-probable que les troubles continueront au Brésil en tout ou en partie”).

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